quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Boa entrevista com Daniel Aarão Reis

'Lula representa o reformismo moderado'
Gabriel Manzano Filho

O Brasil vive, neste segundo governo Lula, 'uma atmosfera cinza', em que as oposições, à direita e à esquerda, parecem lobotomizadas. Isso é resultado do modelo de 'reformismo moderado' praticado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e aprovado por grande parte da população. Para o professor Daniel Aarão Reis, que ensina história contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF), esse quadro é típico da vida brasileira, onde os problemas tendem a ser resolvidos 'lenta, segura e gradualmente', como se fez para o País sair da ditadura militar.

Estudioso do marxismo e das ideologias e autor de vários livros sobre o tema - entre os quais Ditadura Militar, Esquerda e Sociedade -, Reis alerta para 'o ressurgimento de uma direita dura' e diz que as centrais sindicais 'vivem um tempo de ouro', com muitas prerrogativas 'e sem o controle do Estado'. A entrevista:

Lula tem hoje força eleitoral e política imensa e faz um governo quase sem oposição. Isso coincide com o esvaziamento ideológico do debate nacional. Para onde vai o País?

De fato, depois da reeleição criou-se no País uma atmosfera cinza. As oposições, à direita e à esquerda, parecem lobotomizadas, sem iniciativa. Mesmo as esquerdas radicais enfrentam dificuldades para mobilizar suas pequenas bases sociais. O fundamento desta situação encontra-se, a meu ver, no fato de que Lula representa hoje uma política e um programa que eu chamaria de reformismo moderado. Há anos já grande parte da sociedade brasileira inclinou-se nesta direção. A alternância PSDB/PT exprime estas tendências. Não esqueçamos que há quase 20 anos esta alternância polariza a sociedade brasileira.

Onde fica, então, a rivalidade entre petistas e tucanos?

Entre PSDB e PT não há grandes diferenças político-programáticas. José Serra poderia ser um excelente ministro do Planejamento de Lula, e este, um excelente ministro do Trabalho ou supersecretário do Combate à Fome, num governo Serra. O que motiva a disputa entre eles é muito mais o fato de que ambos querem se sentar... e só existe uma cadeira. Mas não excluo, em caso de crise grave, um governo de 'união nacional' formado pelo PSDB e pelo PT.

Quanto isso vai durar?

Esta situação, penso, tende a perdurar enquanto perdurarem as condições gerais que dão o quadro para a implementação das políticas reformistas moderadas. Enquanto elas continuarem agradando às grandes maiorias, o País será governado pelo PSDB e/ou pelo PT.

Por que as oposições se enfraqueceram tanto? Esse quadro mudará para as eleições de 2008 e 2010?

Todos nós, além de médicos e técnicos da seleção brasileira, temos a tentação de exercer a futurologia. Mas é difícil fazer previsões a prazos longos. O que se pode afirmar é que as políticas empreendidas por Lula têm correspondido às demandas das grandes maiorias. Agora, como sempre ocorre com políticas reformistas moderadas, elas precisam de condições gerais amenas, conjuntura econômica internacional e nacional favoráveis, conflitos sociais e políticos de baixa intensidade. Enquanto estas condições perdurarem, não vejo alternância possível. O sucessor do Lula poderá ser um Aécio Neves, um Ciro Gomes, um Serra, mas, no fundamental, nos parâmetros do campo desse reformismo moderado.

Temos a direita que continua com medo de se apresentar como tal e, na esquerda, os sindicatos 'engolem' Lula por entender que sem ele sua vida seria pior. Isso impede um diálogo político adequado?

Já há anos emprego os termos direita e esquerda no plural. O fato de o PFL ter se transformado em DEM é sintomático do que disse acima. Os líderes mais lúcidos do PFL compreenderam as tendências do eleitorado e querem empreender, com a mudança de nome, um movimento em busca do 'grande centro' reformista moderado. Agora, não se pode deixar de perceber o ressurgimento de direitas 'duras' no País. A eleição de vários deputados com um discurso duro repressivo atesta o fenômeno, além de uma crescente nostalgia pelos 'bons tempos' em que o País vivia 'em ordem'.

E quanto às esquerdas?

Penso ser um equívoco dizer que elas 'engolem' o Lula. As centrais sindicais vivem tempos de ouro, combinando todas as prerrogativas concedidas pela tradição corporativista... sem o controle do Estado. Estão muito bem, obrigado, e Lula é o grande líder destes movimentos sindicais moderados que empolgam as grandes centrais, empenhadas em negociar melhores condições de vida e trabalho.

Mas elas resistem a mudar a lei trabalhista, que Lula decidiu apoiar.

Não acredito que o governo Lula vá se empenhar a fundo nesta questão. Porque aí vai arranjar briga com as grandes centrais sindicais, vai unificar reformistas e moderados contra ele. Para ganhar o quê? A confiança que Lula ganhou junto aos grandes patrões hoje é enorme. O anúncio de grandes reformas ressoa como o reclame do quitandeiro. O preço anunciado é alto, mas sempre se pode abaixá-lo. Não digo que não vá haver nenhuma reforma do sistema. Talvez algo se faça, mas nos parâmetros do reformismo moderado.

O afastamento do presidente Lula de antigas posições mais à esquerda coincide com um período de enfraquecimento desse grupo...

Vejo o governo Lula como de esquerda - esquerda moderada, e põe moderada nisso. Mas é de esquerda, não reconhecê-lo é perder as condições de análise do que está acontecendo na sociedade brasileira. A mudança de Lula e do PT não ocorreu em 2002, ela foi se processando lentamente. Escrevi sobre o assunto um artigo para a revista da USP, em fevereiro de 2005 (o artigo, aliás, motivou minha saída do PT, antes que os escândalos e as ondas moralistas subseqüentes viessem à luz).

Quando e porque esse afastamento de Lula começou?

A mudança de pele começou a ocorrer, a rigor, depois da derrota de 1989. Quanto ao lulismo, sempre foi forte no PT e todas as tendências, em algum momento, imaginaram se servir de Lula, subestimando sua inteligência e capacidade de compreensão e articulação. Quem perdeu espaços foram as tendências radicais de esquerda, mas elas não estão eliminadas do jogo. Continuam fortes no MST e nos movimentos sociais urbanos, persistem no interior do PT. Voltarão a aparecer se as condições forem propícias.

O decisivo peso eleitoral dos pobres, em 2002 e 2006, mandou para segundo plano a classe média, que antes comandava as tendências eleitorais. Essa classe parece hoje politicamente sem rumos.

As classes médias não estão nada sem rumo, têm um rumo muito claro, atestado nas excelentes votações de Lula e Alckmin. Elas querem reformar o País devagar e sempre: que a distribuição de renda se faça, mas sem tocar seus privilégios e seu status. Quem ficou órfã, de pai, de mãe e de avós, foi uma parte considerável da grande mídia formal que imaginou ainda ter um poder que já perdeu. A sociedade brasileira diversificou-se - apareceram outras mídias, tomando proporções ainda difíceis de avaliar. Em vez de chafurdar no ressentimento, esta gente precisa lamber as feridas e, sem perder as próprias perspectivas, abrir-se um pouquinho mais para o país em que vivem.

No cenário externo, Lula parece decidido a afastar-se da receita autoritária adotada, por exemplo, por Hugo Chávez, da Venezuela. Para que cenário caminha o continente?

As tendências nacionalistas radicais no continente se colocam como alternativas ao reformismo moderado de Lula. Mas é bom não esquecer que Lula, como ele próprio disse, é uma metamorfose ambulante. Ele não tem convicções profundas nem princípios consolidados e nada impede, segundo as circunstâncias, novas mudanças, com chave contrária. Esta história ainda está longe de acabar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário